quinta-feira, junho 28, 2007

Metamorfose



Há sentimentos...sentimentos que não se escrevem, que não sei como transmitir, determinados sentires...
Este é um deles, o de ser mãe de um ser que nasceu Sónia e passou de um momento para outro a ser Gustavo.
Bem de um momento para o outro...talvez não seja bem assim...para nós talvez fosse assim mas para o próprio as coisas devem ter tido um caminho desde há muito, confuso, revolta, mas deve vir de há muito e não soube como dizê-lo...
Transsexualidade disse-me este meu filho, transsexualidade disseram os médicos.
Nunca até então tinha ouvido falar desta metamorfose.
Doença congénita, desfazamento do cérebro e o corpo. O cérebro não aceita o corpo que foi dado pela natureza... outros dizem que este é um tipo de atitude comportamental...é um sentimento de prisão dentro do próprio corpo...
Mas...mas não há que aceitar o que Deus, o Universo, o que a natureza nos deu, resignando-nos, aceitando? Porquê a minha menina tinha de passar por tudo isto?
Tanto o Gustavo como nós os pais andamos a ser acompanhados em consultas diferentes em psicoterapia comportamental. O processo vai de quatro a cinco anos até estar concluído ou seja até se chegar á certeza de que este é o processo certo, tem de haver consultas a confirmar o diagnóstico em Coimbra. Vai passar pelo tratamento hormonal e então passará ás operações. Na Holanda fazem em menos tempo, mas também é onde se dão os maiores números de suícidios, porque não sendo uma operação reversível, só no final se sentem realmente presos a um corpo que não é deles.
A imagem bem viva que temos, tanto nós pais, família (e é uma família muito grande e sempre nos demos com todos), amigos, não demos por sinais que dizem os médicos devem ter sidos dados...
Primeiro começou a dizer-nos que era lésbica, questionámo-la sobre o que sentia, se não seria confusão de sentimentos, falámos e não tinhamos muito a dizer a não ser que fosse feliz.
No mesmo ano falou-nos dos tratamentos para mudar de sexo e pelo meio comecei a notar algumas atitudes contra as roupas interiores, corte de cabelo a cara com mazelas, parecia que tinha estado a passar com gilete na cara...não parecia, era mesmo... e aí o coração como que aberto áquela nova realidade, ficou maior, parecia que saltava a qualquer instante da caixa. Doía-me a dor dela. Todos os dias se já eram diferentes, passaram a ser cada vez mais importantes, um dia de cada vez dizia eu para mim, para nós. Mas ao mesmo tempo parece que queria viver tudo num só dia para ter a certeza que o final seria sem dúvida um final feliz...
O sorriso para o mundo, para a vida era e é constante neste ser que conversa sobre tudo, observa, comenta, pesquisa.
Desenha, toca viola, conta anedotas, conversa, lá tem os defeitos como todo o mundo mas sabe que levando a vida com um sorriso sempre é meio caminho para momentos de felicidade.
Eu e o pai, só agora vamos chamando de Gustavo, mas enganamo-nos, dizendo o nome e aplicando o pronome ela isto, ela aquilo... Somos seis irmãos, apenas uma das minhas irmãs e os filhos a trataram desde logo por Gustavo, nunca se enganam.
Um destes dias uma das minhas sobrinhas, a Denise de seis anos perguntou porque eu tratava o Gustavo por Sónia ele não devia gostar...
Há um primo que se recusa a tratá-lo por Gustavo. O irmão, a avó e concerteza eu também, culpam-me, onde é que eu estava que não vi os sinais... mas que sinais, pergunto eu? Sempre me achei alerta, mas não vi nada tão importante?
Choro, sempre as lágrimas me saiem, por ter desejado ter este filho, provavelmente ele era um vagabundo do universo, não era para ter nascido, não aqui neste planeta, nesta sociedade, neste mundo, choro pelas lágrimas que ele não chora, pela coragem que o Gustavo tem de levantar a cabeça, assumir aqui no prédio onde vive, com as pessoas que o olham, e sorrir e rir e gargalhar. Choro por me culpar, choro por me sentir impotente, pelas dores, pelo peito apertado que anda há mais ou menos dois anos e meio, pelo período mestrual abundante que tem de passar todos os meses e pelas dores que o acompanham nessa altura.
Ah choro é verdade, por não saber como ajudar este ser de luz, fico mesmo sem vontade de reagir, desaparecer, mas também fico logo de seguida com uma luz linda em meu redor, sinto-me mesmo inundada por esta luz e com uma força e ideias vão surgindo, procuro saber mais, faço perguntas, falo destas angústias á médica que nos acompamha que me diz que tudo isto faz parte do processo. Mas tudo é tão demorado, leva tanto tempo...A verdade é que não há tempo e o tempo tal como o apelo, não é o mesmo que o do Gustavo e ele tem todo o tempo do mundo. As consultas são mais ou menos de quinze a quinze dias então há vezes que parece nada estar a dar resultado acho tudo muita teoria, porque no nosso dia á dia, as consultas os livros não servem...
Porquê? Porquê? Porquê? e mais Porquês??????????????????
Deixei de me massacrar com tantos porquês...também sei que pensamentos positivos levam a resultados positivos. Acredito que somos o que pensamos e é importante fazermos dos momentos, momentos únicos.
Associado a todo este processo e dificultando o seguimento sofre de pânico, fobias de espaço fechado, aberto, transportes, do nome, não tratando do bilhete de identidade o que quer dizer que todo o potencial dela se vira para a ajuda aos outros, ajudando a sorrir quem precisa, mas trabalhar para se sustentar, não se vislumbra, grandes hipóteses. Sempre vai respondendo a anúncios mas com o nome de Gustavo, fez um curriculum, dando o nome que "adoptou" e não coloca o BI, porque o tem caducado e crê que é o caminho, primeiro arranja trabalho, vai á entrevista e depois ...depois acha que vão entender...primeiro barafustei, argumentei para a ilegalidade da situação, mas em vão, agora vou pela serenidade da questão, ouvindo, sorrindo, incentivando-o a fazer algo para contribuir para a evolução do ser grandioso que é.
No hospital onde andamos prontificaram-se para organizar uma exposição com os desenhos que faz, o meu irmão tem um espaço de cabeleireiro e que tem exposições de esculturas e pinturas, também quer ver os trabalhos, mas esse passo tem de ser ele a dar, fui alertada para não querer andar em vez dele, devo andar atenta, ao lado, compreendendo, mas não posso querer viver a vida dele.
Soube que ao nome pode haver uma alteração, colocando em primeiro um nome neutro e em segundo Gustavo, assim não seria tão desfazado o facto de lhe chamarem um nome que não faz parte do BI. Para isso tem de fazer um requerimento...eu podia fazer, mas não posso, esse querer tem de ser mesmo dele. ...................................................................................................
Desistir? NUNCA!!!!
Apenas um dia de cada vez!

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